Ascite quilosa: abordagem diagnóstica e manejo atual
– Definição: líquido peritoneal de aspecto leitoso, rico em triglicerídeos, caracterizado pela presença de linfa torácica ou intestinal na cavidade abdominal.
– Principais etiologias: Em crianças, as anormalidades linfáticas congênitas e o trauma são considerados as etiologias mais comuns, já em adultos, neoplasia maligna abdominal, cirrose, lesão linfática após cirurgia abdominal e infecções constituem as principais causas.
– Epidemiologia: Sua incidência não está bem estabelecida. Estudo prévio de Press et al. publicado em 1984 indicam ascite quilosa como causa de de 1 a cada 20.000 internações. Estima-se que seja menos de 1% de todas as causas de ascites.
– Possíveis consequencias: por ser rica em nutrientes e imunoglobulinas (que se tornam biologicamente indisponíveis ao se acumularem no peritônio), o ocorrência de ascite quilose pode acarretar desidratação, desnutrição, desequilíbrio eletrolítico e imunossupressão.
– Fisiopatologia: há uma interrupção do fluxo linfático.
Em situação fisiológica, aproximadamente metade da linfa se origina no instestino – após hidrólise e emulsificação, ácidos graxos e monoglicerídeos são convertidos em triglicerídeos, que são posteriormente absorvidos pelo sistema linfático como quilomícrons. A linfa te aparência leitosa que pode ser atribuída ao seu alto teor de triglicerídeos e ácidos graxos livres. Também estão presentes na linfa uma mistura compelxa de proteíans e células imunes. Normalmente, uma rede interconectada move a linfa para o ducto torácico, que desemboca na circulação venosa na união da veia jugular interna esquerda e da veia subclávia. A linfa é impulsionada através de seu circuito pela contração/relaxamento ativo e intrínseco dos vasos linfáticos e forças compressivas externas passivas (músculos esqueléticos, variações da pressão venosa central, movimento respiratório e pulsações das artérias adjacentes).
São propostos três mecanismos fisiopatológicos centrais pelos quais ocorre a ascite quilosa: adquirida ruptura linfática ou aumento da produção de linfa), fibrose do sistema linfático e causas congênitas.
– Causas congênitas são as principais causas em pediatria. A linfangiectasia ou doença de Waldmann parece ser causa mais comum de anomalia congênita em crianças (em um trabalho reportada como responsável por até 84% dos casos), sendo caracterizada pela presença de vasos linfáticos dilatados devido à falta de válvulas na submucosa do intestino delgado resultando em extravasamento de linfa. Essa entidade foi descrita em 1961 como causa de enteropatia perdedora de proteínas, linfopenia, hipoalbuminemia e hipogamaglobulinemia. Outro causa são as anomalias linfáticas, que constituem uma porcentagem menor de casos de ascite quilosa congênita. A “síndrome da unha amarela” causa ascite quilosa devido a vasos linfáticos hipoplásicos e consiste na tríade de linfedema, derrame pleural e/ou ascite quilosa e descoloração amarela com distrofia ungueal. A Síndrome de Klippel–Trenaunay é uma doença de herança autossomica dominante, caracterizada por malformações hipoplásicas capilares e linfáticas que causam ascite quilosa, e está associada a hipertrofia óssea e de tecidos moles e óssea. Linfangiomas surgem do sequestro de tecido linfático, em que há uma falha nacomunicação do sistema linfático, podendo ocorrer no pescoço, pâncreas ou mesentério.
– Cirrose: é considerada uma causa adquirida de ascite quilosa, por aumento da produção de linfa. Estima-se que 0.5 a 1% das ascites relacionadas a cirrose sejam quilosas em sua natureza. Etiologia específica não esclarecida, sendo a hipótese de que seja relacionado ao excesso de linfa gastrointestinal e hepática secundário a hipertensão portal, causando uma ruptura espontânea a canais linfáticos da serosa. Dados são relativamente limitados, visto a raridade, mas o TIPS (shunt intrahepatico portosistemico transjuular) provou ser uma terapia efetiva para casos de ascite quilosa refratária. A descompressão da veia porta parece aliviar relativamente a hipertensão linfática.
– Qualquer trauma abdominal que rompa os vasos linfáticos pode causar ascite quilosa. Em crianças, isso inclui a síndrome da criança espancada, sendo reportado que essa síndrome pode ser responsável por 10% dos casos de ascite quilosa na população pediátrica. A Ascite quilosa pode ocorrer precocemente, em cerca de 1 semana, após uma cirurgia abdominal devido à ruptura dos vasos linfáticos ou tardia mente, depois de semanas a meses devido a aderências ou compressão extrínseca dos vasos linfáticos. A ascite quilosa é relatada após muitos procedimentos cirúrgicos, incluindo reparo de aneurisma torácico ou abdominal, colocação de cateter para diálise peritoneal, ressecção de veia cava inferior, vagotomia, fundoplicatura de Nissen, bypass gástrico, duodenopancreatectomia, cirurgia ginecológica, e transplantes de fígado e rim.
– Outras causas menos comuns incluem doenças cardíacas, síndrome nefrótica, pancreatite, doença celíaco, doença de Whipple, mesenterite, pancreatite necrosante aguda quanto a pancreatite crônica.
– A avaliação laboratorial é muito importante na avaliação complementar da ascite quilosa. Exames de sangue usuais/padrão são necessários e devem incluir hemograma completo, eletrolitos, função hepática, proteína total, albumina, lactato desidrogenase (LDH), painel lipídico, amilase e lipase. A paracentese é uma ferramenta diagnóstica obrigatória e de escolha na avaliação de pacientes com ascite. Se a aparência da ascite for opaca ou leitosa e houver suspeita de ascite quilosa, um nível de triglicerídeos deve ser medido no líquido ascítico. Uma concentração de triglicerídeos acima de 200 mg/dL apóis o diagnóstico de ascite quilosa, enquanto um nível inferior a 50 mg/dL a exclui. A aparência macroscópica da ascite quilosa é turva e espessa em comparação com o líquido ascítico amarelo/transparente observado na hipertensão portal. O exame microscópico do líquido corado com Sudan III mostra glóbulos de gordura. A celularidade revela leucócitos com predominância linfocítica. O líquido ascítico deve ser enviado para citologia, contagem de células, coloração de Gram, cultura, e análise de concentração de proteínas totais, albumina, DHL, glicose, triglicérides e amilase. Se houver suspeita de tuberculose, deve-se ainda realizar baciloscopia, adenosina desaminase, e cultura.
– A partir da confirmação diagnóstica de uma ascite quilosa, questionar/observar e correlacionar com possível etiologia:
– Constituem características do líquido ascítico na ascite quilosa: coloração opaca (esbranquiçada ou amarelada), consistêcia grossa, concentração de triglicerídeos acima de 200 mg/dL, celularidade acima de 500 (com predomínio linfocítico), proteína total entre 2.5 e 7 g/dL, gradiente soro-ascite (GASA) < 1.1 g/dL (exceto se ascite quilosa secundária a cirrosse), colesterol baixo (gradiente sérico/ascite <1), DHL entre 110 e 100 UI/L, glicose >100 mg/dL.
– A avaliação radiológica também desempenha um papel importante na avaliação da ascite quilosa. A linfangiografia é a ferramenta diagnóstica considerada padrão-ouro dentre os exames de iamgem para avaliação de casos de obstrução linfática. A linfangiografia e a linfocintilografia são úteis na detecção de linfonodos retroperitoneais anormais, vazamento, fistulização e permeabilidade do ducto torácico. Essas técnicas também são eficazes para avaliar pacientes que sejam candidatos para cirurgia e avaliar os efeitos do tratamento. A tomografia computadorizada e a ressonância magnética não são exames específicos para ascite quilosa, mas são úteis na identificação de massas intra-abdominais, coleções líquidas ou linfonodos. Na TC, a densidade da ascite quilosa se assemelha à da água e é indistinguível da urina, bile, secreções intestinais ou ascite simples.
– O manejo da ascite quilosa é um multifacetado, mas com opções terapêuticas limitadas. O principal terapia gira em torno de corrigir a causa subjacente e aplicar medidas conservadoras para melhorar o conforto do paciente, reduzir a recorrência e otimizar os resultados. O tratamento deve ser individualizado e ajustado para a gravidade. As medidas conservadoras estão centradas na manutenção de um equilíbrio nutricional ideal e na administração de terapias para reduzir a produção e o fluxo de linfa.
– O passo inicial chave no manejo da ascite quilosa é otimizar o estado nutricional do paciente. O suporte nutricional inclui uma dieta rica em proteínas e com baixo teor de gordura suplementada com triglicerídeos de cadeia média (TCM) – os TCMs são absorvidos pelos enterócitos e transportados como ácidos graxos livres e glicerol diretamente para o fígado através da veia porta, poupando o sistema linfático (enquanto os triglicerídeos de cadeia longa, que são convertidos em ácidos graxos livres e monoglicerídeos que são então transportados como quilomícrons para os ductos linfáticos intestinais, contribuindo para o pool linfático geral). O orlistat, um inibidor de lipase gástrica e pancreática, demonstrou reduzir a concentração de triglicerídeos na ascite quilosa em adultos, em conjunto com uma dieta com baixo teor de gordura com triglicerídeos de cadeia média, embora os dados sejam limitados.
– A somatostatina, ou seu análogo sintético, octreotide, também tem sido utilizada no tratamento da ascite quilosa. O mecanismo exato de ação da somatostatina ou de seu análogo não é completamente compreendido. Aparentram diminuir a pressão portal ao inibir o glucagon e outras vasodilatações esplâncnicas mediadas por peptídeos intestinais. Também diminuem o peristaltismo, a absorção intestinal de gorduras, a concentração de triglicerídeos no ducto torácico e atenua o fluxo linfático nos canais principais. A somatostatina precisa ser administrada por via intravenosa devido à sua meia-vida curta de 1-3 minutos, já o pctreotide tem uma meia-vida mais longa de 2 horas e a vantagem da administração subcutânea. Este análogo da somatostatina tem sido usado com sucesso em pacientes com ascite quilosa secundária a pancreatite, neoplasia, pós-transplante de fígado, trombose de veia porta e casos idiopáticos.
– Além da nutrição e dos análogos da somatostatina, a nutrição parenteral total (NPT) pode ser considerada se outras medidas falharem. No entanto, foi reportado que nutrição enteral com triglicerídeos de cadeia média pode ser uma abordagem superior ao uso de NPT.
– A paracentese terapêutica pode ser realizada para proporcionar alívio sintomático temporário. Entretanto, quando possível, a drenagem repetitiva deve ser evitada, pois pode levar ao desequilíbrio eletrolítico, desnutrição e infecção.
– Várias estratégias terapêuticas adicionais foram testadas para ascite quilosa refratária, incluindo embolização com cola, derivação esplenorrenal, ligadura cirúrgica e embolização de canais linfáticos, mas os dados são preliminares. O shunt peritoneovenoso é raramente realizado hoje em dia devido à sua alta morbidade por sepse, desequilíbrio eletrolítico, coagulopatia intravascular disseminada, obstrução do intestino delgado e embolia aérea. Apesar do número de opções terapêuticas potenciais disponíveis para ascite quilosa, o tratamento conservador continua sendo a base da terapia nesses pacientes até que surjam mais dados.
.
Fonte:
Lizaola B, Bonder A, Trivedi HD, Tapper EB, Cardenas A. Review article: the diagnostic approach and current management of chylous ascites. Aliment Pharmacol Ther. 2017 Nov;46(9):816-824. doi: 10.1111/apt.14284. Epub 2017 Sep 11. PMID: 28892178.
“DISCLAIMER”/ aviso legal: o objetivo dessa página é compartilhar conhecimento médico, visando um público alvo de médicos, pediatras, gastroenterologistas pediátricos, estudantes de medicina. Os conteúdos refletem o conhecimento do tempo da publicação e estão sujeitos a interpretação da autora em temas que permanecem controversos.
A linguagem é composta de jargões médicos, uma vez que não visa o público de pacientes ou pais de pacientes. O conteúdo dessa página não pode nem deve substituir uma consulta médica.
As indicações e posologia de medicamentos podem mudar com o tempo, assim como algumas apresentações ou drogas podem ser retiradas do mercado.
Em caso de dúvida relacionada ao conteúdo ou se algum dado incorreto foi identificado, entre em contato!