Doença de Wilson

16 de março de 2020

Doença de Wilson

  • Trata-se de uma doença genética, de herança autossômica recessiva, que resulta de distúrbio do metabolismo do cobre causado por mutações no gene ATP7B – que codifica uma ATPase de transporte de cobre  (necessária para a excreção de cobre na bile). Assim, há acúmulo progressivo de cobre no fígado (e em outros órgãos), que resulta em toxicidade.
  • Prevalência estimada – 1: 30.000.
  • Via de regra, não diagnosticada antes de 1 ano de idade, porque deve acontecer o acúmulo do cobre, que exige tempo, esse acúmulo  começa na infância, quando alimentos sólidos, contendo cobre, são introduzidos na dieta.
  • As diretrizes da Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátricas (ESPGHAN) recomendam que a doença de Wilson seja considerada no diagnostico diferencial de hepatopatias a partir de 1 ano de idade. Na prática, a doença de Wilson  é diagnosticada geralmente a partir de 3 anos de idade, mas há relatos de caso de idades menores. Raramente tem-se sintomas antes de 5 anos de idade.
 
  • Vale notar que achar outra causa de disfunção hepática, como DHGNA e Hepatite auto imune não exclui doença de Wilson. A presença de auto-anticorpos, sobretudo FAN, ocorre comumente na doença de Wilson, podendo levar ao diagnóstico erroneo de hepatite auto-imune, e ainda, casos de associação de DW e HAI são descritos.
 
  • Com o passar do tempo, há deposição de cobre nos diversos órgãos: sistema nervoso, córneas, rins, coração, e, claro, fígado. A deposição do cobre em outros órgão que não o fígado ocorre geralmente durante a segunda década de vida. Entretanto manifestações neuro-psiquiátricas são relatadas na primeira década – presentes em torno de 5% do casos de pediátricos com doença hepática. O anel de Kayser-Fleischer ocorre pela deposição de cobre na membrana de Descemet, raramente visto em crianças assintomáticas ou com doença hepática leve, quase sempre presente na presença de envolvimento neurológico.
  • A apresentação clínica da doença de Wilson na faixa etária pediátrica pode ser extremamente variável, desde de doença hepática assintomática (achado acidental de enzimas hepáticas alteradas) a cirrose, ou mesmo insuficiência hepática aguda fulminate. Sintomas neurológicos e psiquiátricos, típicos de adultos, são raros. Hemólise pode estar presente, podendo ser precipitada por infecção ou drogas, e pode ser grave na hepatite fulminante por doença de Wilson.
  • A insuficiência hepática aguda por DW tem prognóstico bastante reservado e geralmente requer transplante. Assim sendo, as diretrizes da ESPGHAN recomendam que crianças com doença de Wilson (ou mesmo apenas suspeita) e insuficiência hepática aguda ou cirrose hepática descompensada devem ser transferidas e manejadas em centros pediátricos que realizam transplante hepático.
 
  • Se não diagnosticada e tratada, há progressão da doença hepática e pode haver lesão neurológica irreversível. As diretrizes da ESPGHAN recomendam que que a doença de Wilson seja excluída em adolescentes com sintomas cognitivos, psiquiátricos ou transtornos de movimento não explicados por outra causa.
 
  • O diagnóstico em crianças é difícil porque pacientes pediátricos são frequentemente assintomáticos, e critérios convencionais estabelecidos para adultos podem não ser apropriados. Os testes de diagnóstico em pacientes suspeitos devem incluir testes de função hepática (transaminases séricas, bilirrubina conjugada e total, fosfatase alcalina e tempo de protrombina / INR), ceruloplasmina sérica e cobre urinário de 24 horas. O sistema de pontuação Ferenci deve ser aplicado às crianças, e a análise de mutação do gene ATP7B pode facilitar o diagnóstico. A estimativa de cobre no tecido hepático pode eventualmente ser útil quando o o diagnóstico é incerto (análise quantitativa, não qualitativa – infelizmente pouco disponível no Brasil).
  • Exite um “gap” importante quando se consideram os testes de metabolismo do cobre, quanto ao que é considerado normal vs. o que seria altamente sugestivo de doença de Wilson. Valores normais de ceruloplasmina são de 20 a 40 mg/dL, alta suspeição de DW se <10 mg/dL; cobre urinario de 24 horas normal seria <40 microgramas (ou 0.65 micromol), alta suspeição de DW se > 100 microgramas (ou 1.6 micromol); e cobre tecidual hepático normal < 50 microgramas/g de peso seco, alta suspeição de DW se >250.
 
  • De forma geral, nas crianças com doença  hepática avançada, os testes bioquimicos tem as caracteristicas clássicas, enquanto que na criança pequena ou com doença leve a moderada há maior duvida diagnóstica – ceruloplasmina e cobre urinário pode ser normais.
  • Na hepatite aguda fulminante por DW, tem-se as caracteristicas clássicas de colestase grave (chega a ter BD>17.5 mg/dL), transaminases pouco elevadas em relação ao grau da colestase (em geral de 100 a 500 IU/L), fosfatase alcalina serica baixa (por deficiência de zinco); e pode haver a anemia hemolitica coombs negativo.
 
  • Ceruloplasmina: tipicamente baixa no RN, sendo considerada um teste útil em idade> 1 ano. Grande discussão de ponto de corte/ “cutoff”. Maioria dos pacientes tem valor <20, mas considerada alta suspeição se <10. Até 20% dos pacientes com DW tem ceruloplasmina normal, e até 20% dos heterozigotos/ carreadores da mutação podem ter ceruloplasmina baixa (sem ter a doença).
  • Outras causas de ceruloplasmina baixa: insuf. hepatica de outras causas, má-absorção, distúrbios da glicosilação, desnutrição, sd. nefrotica, enteropatia perdedora de proteina, deficiciência de cobre, e pode ser simplemente hereditária.
 
  • Cobre sérico: não ajuda o diagnostico (pode ser útil depois – uma vez feito o diagnostico, para monitorar tratamento). 90% circula ligado a albumina e  só 10% do cobre fica livre. Em doença hepática grave pode ser normal, ou pode ser até bem elevado, por liberação tecidual.
  • Cobre urinário de 24h: cutoff de 40 microgramas tem sensibilidade de aproximadamente 80%, especificidade de 88%. Teste de penicilamina pode ajudar, mas considerado inconsistente (deve aumentar significantemente a excreção urinária de cobre). Importante assegurar que o frasco da coleta da urina seja adequado (sem contaminação de cobre)
 
  • Teste génetico: Mais de 500 variantes do gene ATP7B foram descritas. Maioria dos pacientes tem heterozigose composta. Há certa especificidade populacional das variantes (o que pode não ser aplicável ao Brasil, dada a miscigenação). Sequenciamento genético identifica dois alelos em 95% dos pacientes, limitações de não avaliar introns e regiões de junção de exons, e da identificação de variantes de significado clínico indeterminado.
 
  • Biópsia hepática: na dúvida diagnostica está recomendado realizar a quantificação do cobre hepático (analise qualitativa não serve – lembrando que qualquer doença colestática cursa com acúmulo de cobre em zona 1). Amostra deve idealmente ser > 1cm, e ser colocada em frasco plástico seco, sem cobre. Acurácia desse teste diagnostico foi pouco reportada. Falso negativo na quantificação pode ocorrer porque a deposição de cobre pode não ser homogênea. Alterações mitocondriais podem ser vista na microscopia eletrônica.
 
  • Sistema de pontuação/score de Ferenci: de 2001, consenso de experts. Sensibilidade e especificidade reportadas na população pediátrica variando de 90-97%. Considera: presença de anel de KF, presença de sintomas neurológicos ou psiquiatricos compatíveis, anemia hemolítica coombs negativo + cobre sérico elevado, cobre urinário na ausência de hepatite aguda, quantificação do cobre hepático (ou presença de hepatócitos positivos para rodanina na ausência da possibilidade de quantificar), ceruloplasmina serica, presença de mutações definidoras de doença.
  • Passos para o diagnóstico propostos nas diretrizes da ESPGHAN: 1) avaliação clínica e laboratorial – hepática e de metabolismo do cobre; 2) teste molecular (direcionado para mutações comuns ou exoma); 3) Cobre hepático. Calculando-se o score de Ferenci em cada passo. Se score confirma o diagnostico, não precisa de mais investigações.
 
  • Uma vez diagnosticada a doença de Wilson, screening deve ser realizado em todos os parentes de primeiro grau, incluindo irmãos, filhos e pais (independente da ausencia de sintomas). Como trata-se de doença autossômica recessiva, irmãos tem chance teorica de 25%. Aconselhamento genético também deve ser indicado.
 
  • Tratamento baseia-se em remover o excesso de cobre com agentes quelantes, como penicilamina ou trientina, e/ou em bloquear a absorção intestinal de cobre, com sais de zinco.
  • Por terem um perfil de segurança mais favorável, os sais de zinco (acetato de zinco), podem ser usados em crianças assintomáticas identificadas por meio de screening a partir do diagnóstico de um familiar. Sais de zinco também pode ser considerados como terapia de manutenção após quelação (após “de-coppering”), desde que com essa transição de terapia, os níveis séricos de transaminases permaneçam normais.
  • Crianças com sinais de doença hepática grave devem ser tratadas preferencialmente com agentes quelantes.
 
  • Penicilamina: quela cobre e aumenta a excreção urinária. Eficaz para prevenir a progressão da doença em pacientes assintomáticos, e melhorar sintomas em 80% dos pacientes sintomáticos – inclusive com insuficiência hepática, mas sem encefalopatia (não indicada na encefalopatia porque pode causar piora dos sintomas neurológicos) Até 1/3 dos pacientes não tolera a droga. Efeitos colaterais incluem: febre, rash, diarréia, neutropenia, trombocitopenia, linfadenopatia, proteinúria, lupus-like, aplasia de medula. Aumenta níveis de FAN, mas sem correlação clara se isso determina fenômenos imunomediados. Dose alvo de 10-20 mg/kg/dia, mas inicio deve ser progressivo, com monitorização rigorosa quando a droga é iniciada. Dose dividida em 2 ou 3 vezes por dia. Deve ser administrada longe da refeição (1 hora antes ou 2 horas depois) pois alimento interfere na sua absorção. Visa atingir excreção de cobre de 200-500 mcg/24h.
  • Diante da ocorrência de eventos adversos relacionados à penicilamina, essa deve ser suspensa e deve solicitada a troca para sais de trientina – não cobertos como agente de primeira linha (um problema que não ocorre apenas no SUS do Brasil, também em outro países). Eventualmente pode-se considerar troca para zinco, de acordo com a gravidade da doença hepática – se leve/normalização bioquímica previamente alcançada.
 
  • Trientina: dose inicial de 20 mg/kg (maximo 1000 mg)/dia dividida em 2 ou 3 doses. Manutenção de 900 a 1500 mg/dia dividida em 2 ou 3 doses. Também precisa ser dada longe da refeição (1 hora antes ou 3 depois). Mesmo alvo de excreção de cobre que Penicilamina (200-500 mcg/24h durante a manutenção). Discutível se deveria ser usada como primeira linha por ter menos efeitos colaterais que o outro quelante disponível, a penicilamina, entretanto associada com mais risco de piora neurologica que penicilamina. No SUS só disponivel mediante processo, por a falha/intolerância da penicilamina. Efeitos colaterais da trientina incluem alergias, artralgia, cãimbras, anemia sideroblastica.
 
  • Sais de zinco: sulfato, acetato ou gluconato. Sulfato: o sal mais disponível, porém mais associado a intolerância. Preferir acetato. Efeitos colaterais gastrointestinais podem comprometer adesão ao tratamento: náusea, vômitos, epigastralgia, úlceras gastricas ou duodenais; raramente – anemia por deficiência de ferro, aumento de amilase e lipase na ausência de características de pancreatite. Em geral, intolerância gastrointestinal resolve com a transição de sulfato para acetato. Dose por idade: 25 mg 2x/dia para crianças menores de 5 anos, 75 mg três vezes/dia para crianças de 5 a 16 anos (ate peso de 50 kg), 150 mg em 3 doses diarias se peso >50 kg e/ou idade >16. Cobre urinario deve ser de 30-75 mcg/24 horas; se boa adesão o zinco sérico dever ser maior que 125 mcg/dL, e o zinco urinario > 2mg/24 h.
 
  • Efeitos de todas as drogas são esperados geralmente entre 2 e 6 meses.
  • Recomenda-se a restrição de alimentos ricos em cobre – mais comuns: fígado, lagosta e marisco (principalmente ostras), cogumelos (principalmente shitake), nozes e sementes, folhas verdes, chocolate ao leite. Entretanto, não há evidencia de que a restrição previna o reacúmulo de cobre (apenas bom senso?) ou melhore os desfechos nos pacientes em uso de quelantes. [Opinião da autora: Na prática, restringir!]
  • O seguimento das crianças diagnosticadas dever ser rigoroso e frequente: semanal no primeiro mês após o início da terapia, e mensal a trimestral até que níveis séricos de transaminases se tornem normais (pode ser trimestral desde que doença compensada e desde que não haja dúvida quanto a adesão ao tratamento). Se normalização bioquimica, o seguimento pode ser tri- ou semestral, com mais tranquilidade. O monitoramento inclui exame físico, testes laboratoriais (hemograma, testes de função hepática e renal, cobre sérico), dosagem de zinco se uso de sais de zinco, e cobre urinário de 24 horas para avaliar a eficácia, superdosagem ou não adesão à terapia. Deve-se monitorar quanto ao desenvolvimento de hipertensão portal – USG recomendado no minimo anual, se disponível, elastrografia deve ser realizada.
 
  • O transplante hepático corrige o defeito enzimático, portanto tratamento medicamentoso ou restrição dietética não são mais necessários após o transplante. Menos de 1% dos pacientes pediátricos precisa de Tx hepatico. Importante observar que o transplante de figado não corrige/reverte lesão neurológica/psiquiatrica, portanto não está indicado se lesão neurologica grave.
  • Diferente da lesão neurologica, o anel de KF enfraquece/ e até desaparece, com tratamento da DW.

 

 

REFERENCIA:

  1. Wilson’s Disease in Children: A Position Paper by the Hepatology Committee of the European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2018 Feb;66(2):334-344). Piotr Socha;Wojciech Janczyk;Anil Dhawan;Ulrich Baumann;Lorenzo D’Antiga;Stuart Tanner;Raffaele Iorio;Pietro Vajro;Roderick Houwen;Björn Fischler;Antal Dezsofi;Nedim Hadzic;Loreto Hierro;Jörg Jahnel;Valérie McLin;Valerio Nobili;Francoise Smets;Henkjan Verkade;Dominique Debray.

 

 

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